Escrever é “imperativo biológico” para João Lobo Antunes.
O neurocirurgião João Lobo Antunes deixou a plateia do Auditório Municipal da Póvoa de Varzim comovida na conferência de abertura do 14º Correntes d’Escritas, intitulada “Não fazem mal as musas”.
Em tom confessional, ao ler em voz alta grande parte do seu ensaio “A História do Velho”, Lobo Antunes aludiu à degradação física de um ser humano, com a consequente perda de diversas faculdades até à morte. O curioso é que o velho do ensaio era o seu pai, mas toda a gente reconheceu no texto algum velho conhecido, algum pai, algum avô. Ora, confirmou João Lobo Antunes: “isto é que é um ensaio: uma história simples de contar, um acumular de experiências, uma pesquisa aberta…”
Apresentado na Conferência de abertura do encontro de escritores por José Carlos Vasconcelos como humanista, ensaísta e escritor, o médico esclareceu os presentes acerca do seu entendimento do género literário a que se dedicou – o ensaio -, por considerar que não tem jeito para escrever ficção: “Refugiei-me nos ensaios e nunca escrevi ficção, porque não consigo ultrapassar a barreira. Não sei se isso é bom, se é mau”.
João Lobo Antunes defende a escola ensaísta de Montaigne, em Portugal também seguida por António Sérgio, admitindo que se sentiu “muito confortável com este género”. Aliás, a exemplo de muitos outros clínicos em Portugal, país onde “muitos médicos deram bons escritores”. Lobo Antunes recordou que Miguel Torga interrogava-se sobre esta ligação num dos Diários e dava a resposta: “a caneta que escreve e a que prescreve revezam-se harmoniosamente na mão”. Por isso mesmo, João Lobo Antunes retitulou a Conferência do encontro: “deveria chamar-se Não fazem mal as musas aos doutores”.
Sobre o seu processo de escrita, João Lobo Antunes lembrou que as influências começaram cedo com o pai a ler para ele e para os irmãos ‘Os Maias’ em voz alta. Eram crianças e ouviam a leitura, “uma coisa mágica”. E, assim, “fui acumulando experiências, percebi que se começasse a escrever tinha muita coisa na cabeça, era uma espécie de mina”, afirmou João Lobo Antunes, que adiantou, por outro lado, que “existe um tempo certo para escrever”, isto é, “as ideias ficam na cabeça a fervilhar e depois, quando amadurecem, está na altura de as fruir para a escrita”.
No final da Conferência, ao trocar impressões com o público, João Lobo Antunes desvendou mais uma página sobre a sua personalidade: “cada vez valorizo mais os afectos, as emoções”. Ao analisar 40 anos de carreira como neurocirurgião, João Lobo Antunes considerou que o tempo se encarregou de duas coisas na sua vida: “muito mais sofrimento em relação ao destino das pessoas e mais fé na natureza, que vejo como aliada e não como inimiga”.
As experiências baseadas no relacionamento com os seus doentes, durante décadas, levam o neurocirurgião a preferir substituir o termo ética por compaixão deontológica, que não é nada mais nada menos que, afirmou, “um bicho terreno que se preocupa e ajuda outro bicho terreno”.
A medicina continua a ser para João Lobo Antunes a principal faceta da vida e o que melhor o define, apesar de a escrita ser um “imperativo biológico”, porque “não sei não trabalhar”, explicou. O certo é que “a minha raiz está na sala de operações, o resto é espuma, não me preocupo nada com a posteridade”, concluiu João Lobo Antunes.
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