Historicando

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10 janeiro 2011

Crónica

(…) A miséria é, infelizmente, fértil nesse paradoxo: em vez de produzirmos riqueza, produzimos ricos. Antes fossem ricos. Porque são
apenas endinheirados. E endinheirados que não produzem.
Faço aqui, pois, o voto pela via da negação: o que eu mais queria que deixássemos de ser. E escolho: que virássemos costas ao roubo. Já não falo da prática generalizada que tomou conta das colunas dos jornais. Não falo apenas desse roubo que se estende dos medicamentos, aos cabos de fibra óptica, dos passaportes aos carris de comboio, das condutas de combustível a painéis solares para fontes de água. Não falo só do furto que causa milhões de dólares de prejuízo a companhias de electricidade, telefone e águas. E que nos torna mais pobres a todos nós. Não falo sequer desse outro espantoso roubo que faz com que, na berma das estradas, se comece por roubar os pertences dos sinistrados em lugar de lhes prestar socorro. Falo de outra roubalheira que se infiltrou no tutano do nosso corpo enquanto nação: a ideia que roubar é legítimo por causa da pobreza. Ou por causa da escassez de tempo que o político tem por mandato. Ou por causa de qualquer outra razão. Falo de outros níveis de roubo: o roubo da esperança pelos políticos, o roubo da propriedade pública pelo gestor, o roubo da História e da memória por aqueles que se acham a geração de estreia nacional. Falo dessa roubalheira que é a corrupção, lenta hemorragia que nos pede insidiosa habituação. Falo do roubo do pensamento crítico por aqueles que fazem uso da ameaça velada, da censura subtil ou da arrogância e desprezo pelo debate aberto. Numa palavra, o roubo no nosso país já não é um simples somatório de casos policiais, uma onda crescente que se destaca de um mar são. O furto tornou-se numa cultura, num sistema. Tornou-se regra. Somos hoje um país em permanente assalto a si mesmo. E nenhuma nação, por mais bem que esteja no caminho do progresso, pode conviver com uma doença assim.
In: O GAMASUTRA – MIA COUTO