TECNOLOGIA E MAGIA
“E visto que o homem não pode viver sem milagres ele fará os seus próprios milagres"
Fiodor Dostoiewski, "Os Irmãos Karamazov"
Foi o físico e escritor inglês de ficção científica Sir Arthur Clarke quem afirmou que, nas suas formas mais evoluídas, a tecnologia é indistinguível da magia. Para o comum das pessoas o que distingue afinal a música proveniente de um CD ou a descolagem de um Airbus ou a comunicação por telemóvel de fenómenos mágicos? Que diria um homem primitivo se, transportado subitamente numa máquina do tempo (esta sim, magia autêntica, que a tecnologia actual não proporciona), deparasse com um CD, um Airbus ou um telemóvel?
A associação entre tecnologia e magia tem algo de paradoxal. Pois não é a tecnologia filha da ciência? E não é a magia o reverso da ciência? Não está a tecnologia baseada na razão e não é, por isso, que funciona de uma forma objectiva? E não está a magia baseada na superstição sendo, por isso, subjectiva?
Pois a tecnologia é uma filha da ciência - ninguém recusará o parentesco - mas é uma filha fugida de casa. Não se sabe em muitos casos quem é o pai. A situação é tão estranha que, por vezes, a filha até precede a mãe... O inglês Francis Bacon (Sir tal como Clarke), logo no século XVII, quando nasceu a ciência moderna, previu a operacionalidade do conhecimento na vida social. A ciência permite mudar a vida, permite mudar de vida, precisamente através dos desenvolvimentos tecnológicos.
Curiosamente, é a possibilidade de esconder a ciência, de a meter numa "caixa negra", que assegura o êxito de muitos artefactos tecnológicos que dela provêm. Com efeito, não é necessário saber sobre ondas electromagnéticas ou sobre transístores para, nos nossos dias, usufruir de uma televisão ou de um computador. Basta apenas usar o comando televisivo (e nem sequer são precisos todos os botões, mas apenas o mudador de canais e o regulador de som) ou o teclado e o rato (para muitas aplicações basta só o rato!). A invenção tecnológica que colocou vários objectos ao alcance das multidões foi a do botão que liga ou desliga, e que regula ou desregula, esteja ele no comando televisivo ou no rato do computador. As imagens e os sons ficaram ao alcance de um clique. Pura magia!
Segundo afirma Richard Stivers no seu livro "A Tecnologia como Magia. O Triunfo do Irracional" (Instituto Piaget, 2001), livro que abre com a citação de Dostoiewski que está acima, a "televisão aparece ao espectador como uma descrição da realidade; além disso, a realidade é entendida porque está na televisão". A televisão é, portanto, um espelho mágico. Para o mesmo autor, "o computador é a forma de magia final e mais poderosa; ele recapitula todas as formas anteriores". De facto, o computador inclui não só a televisão como o leitor de CD e o telefone (falta só ser o avião, embora possa servir para reservar voos).
A tecnologia consiste basicamente em alterar a Natureza, em controlar o ambiente à nossa volta, para nosso benefício. Por seu lado, a magia também é uma tentativa de interferir sobre a Natureza. Um cientista ou uma pessoa com cultura científica saberá distinguir as duas (a tecnologia só falha por vezes, só por acaso falha, ao passo que a magia falha quase sempre, só por acaso acerta). Mas muitas pessoas talvez não consigam discernir as diferenças...
Stivers fornece o exemplo de um anúncio televisivo a "airbags" que proclama: "A 90 km/h uma oração é demasiado lenta". A diferença entre tecnologia e magia seria a acreditar neste anúncio, destinado ao grande público, uma diferença de velocidade. De qualquer modo, os regulamentos oficiais de automóveis consagraram a obrigatoriedade dos "airbags", ao passo que as orações continuam a ser facultativas.
Para Stivers o segredo da identificação da tecnologia com magia não reside tanto no hardware, mas mais no software: certas imagens e palavras funcionam como passes de mágicas. Por exemplo, os anúncios de certos programas televisivos (telenovelas, "reality shows", etc.) são feitos para encantar, para hipnotizar os telespectadores. O discurso apresenta-se parcial ou completamente desintegrado; os "sound bytes" substituem frases completas e coerentes, em nome de uma lógica de rapidez e eficácia (não há tempo a perder: o discurso tem de ser rápido para o lucro também ser rápido!). Foi assim que proliferou todo um conjunto de tecnologias não materiais, que incluem técnicas de persuação psicológica, de terapia, de "marketing" e de gestão. Estas modernas formas de magia amplificaram bastante o poder dos objectos tecnológicos. A ameaça do irracional estará mais no software do que no hardware...
Como havemos de nos proteger da magia que impera por todo o lado e que, subrepticiamente, nos tolhe a liberdade? Pois a ciência ainda é o melhor refúgio. E a escola ainda é o melhor meio para nos ensinar esse refúgio.
Como escreveu Stivers:"A minha resposta pessoal à ameaça da propagação da irracionalidade é a de dar ênfase à educação; na verdade, é a nossa última esperança na batalha pela razão".
Posted by Carlos Fiolhais, in De Rerum Natura